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quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Kernunna – Snark (Canto da Colina)

 

A música que desta vez compartilho com vocês é a música Snark da banda brasileira Kernunna. A banda, que tem como principal estilo o folk metal, foi formada em Varginha, Minas Gerais, em 2012. A banda nasceu com a iniciativa de Bruno Maia, vocalista da banda Tuatha de Danann – uma das bandas expoentes do gênero no Brasil. A música pertence ao único álbum da banda até então, o The Seim Anew lançado em 2013. Abaixo deixo o vídeo e a tradução da letra da música:




Snark

Aqui eu estou novamente em perseguição

Assombrado por uma coisa que eu estou procurando cego e obcecado há muito

tal um quebra-cabeça, como um sonho -

Estou perseguindo ou sou eu quem está sendo caçado por alguém?



Não há nenhuma pista - Estou andando em círculos há muito tempo

perseguindo dia e noite, sem cansaço, no entanto



Pesadelos crescentes, medos crescentes

Alimentando Esperanças e semeando sorrisos - Não importa os humores e estados de espírito

Encarando muros e chacoalhando mãos

ainda não sabendo o que está faltando nesta falta de sentido, pode apostar



Até mesmo a minha língua não molda o que minha cabeça imagina e cria

Como posso conceber tal mundo dentro desta tempestade?



É como se eu estivesse caçando o velho Snark

Uma chama súbita irrompe na escuridão

Em seguida, dois passos para trás em direção a lugar nenhum

porque eu nunca saí do lugar



Até mesmo a minha língua não molda o que minha cabeça imagina e cria

Como posso conceber tal mundo dentro desta tempestade?



sonhos, sons, Mente

UH... É sem sentido, eu estou ficando cansado

Um turbilhão de imagens que nunca correspondem

Uma trilha que se baseia em um pretexto

Então qual é o ponto? Devo apenas seguir em frente?



A letra é uma construção rica e bastante madura. Ela aborda a indeterminação... o impalpável. O próprio Bruno Maia comentou sobre ela no extinto site Kernunna.net:

“Esta é um diferencial super positivo no disco. Ela não tem nenhum instrumento folk (até tinha, mas tivemos problemas com uns arquivos e não tínhamos tempo pra gravar de novo etc…) e se alguém escutar esse som apenas, pensará que o Kernunna pratica um outro tipo de som. Mas sem essa música o disco perderia muito. Ela soa diferente do resto todo, mas a acho muito bonita e o Khadhu arrasou nessa música, tanto no baixo fretless como nos vocais…quando ouvi o que ele gravou fiquei espantado, ele é um monstro!! Eu gravei os teclados base dessa música e nosso amigo Rafael Castro fez todas as linhas e solos. Acho que é a letra mais profunda do disco, a mais legal. O título é retirado do The Hunting of the Snark do Lewis Carrooll. Snark é uma  palavra valise que ele criou, como muitas outras, que une os dois significantes  Snake (serpente) + Shark  (tubarão), mas é também uma alusão à impossibilidade da definição máxima de tudo que nos cerca, essa coisa de nem mesmo nossa língua representar devidamente o que sentimos e o que vemos.  É um dos dramas que acompanha o homem desde os primórdios: não se encaixar e não ver sentido nas categorias e estruturas da vida e do mundo em que ele está. Snark é o inalcançável.”

O livro de Lewis Carroll (autor de Alice no País das Maravilhas) de quem Bruno fala, conta a história de um grupo de 10 caçadores que vão em busca do Snark. No caminho um deles fala se recordar que uma vez o seu tio o tinha alertado que se o Snark fosse da espécie Boojum, ao ser encontrado ele iria desaparecer e nunca seria encontrado de novo. No fim do poema esse mesmo rapaz finalmente encontra o Snark, mas quando grita para avisar aos outros para verem, ele não estava mais lá, nem nunca mais estaria.

 Quem jogou o jogo The Witcher 3: Wild Hunt pode se lembrar do NPC que fica numa montanha na costa esperando observar uma baleia branca rara, mas que nunca a vê porque perde a atenção por um momento para responder o nosso personagem controlado, o Geralt. Essa cena é uma clara referência ao Snark de Lewis Carroll.


 

Como retrata a letra, Snark é aquela ideia que às vezes nos fascina e acreditamos na sua possibilidade e buscamos a entender, mas no fim se percebe que não se chegou a lugar algum. Tentar caçar o Snark é como tentar agarrar os raios de sol, por um momento pode-se pensar que os temos nas mãos, mas quando as abrimos estamos com as mãos vazias. Ou quando pensamos no infinito, por algum momento podemos achar que compreendemos a sua grandeza, mas aí nos damos conta de que nem estávamos perto.

A linha “Estou perseguindo ou sou eu quem está caçado por alguém?” me fez recordar da cena clássica do filme Amnesia (Titulo original: Memento) que exemplifica bem isso e também aborda a temática da música.

Além disso, pode ser intencional ou não mas a parte que eu traduzi como “uma trilha que se baseia em um pretexto” do original “A pretend reason leading track”, se formos tentar traduzir de forma literal acaba por si tornar também um Snark. Eu fiquei um bom tempo tentando transcrever o sentido literal para o português. Essa dificuldade dá sentido a letra da música quando diz:

“Até a minha língua não molda o que minha cabeça imagina e cria

Como posso conceber tal mundo dentro desta tempestade?”

É incrível a criatividade e todas essas camadas de informações que essa rica letra tem pra oferecer.

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

O corvo e o Lobo

 



O Corvo

O Lobo passara as últimas horas perseguindo o rastro de sua presa. Uma corça havia sido atacada ao tentar cruzar um lago congelado na companhia de seu rebanho. De um buraco no gelo no lago, uma criatura saltara e havia abocanhado o animal, contudo o ataque não havia sido preciso o suficiente para puxar o cervídeo para água. A corça seguia viva, mas ferida a ponto de deixar um rastro de sangue a cada distância de por volta de 1000 passos, e por isso havia sido separada do grupo. A sua condição atrairia predadores e pelo bem do conjunto, numa espécie de acordo sem palavras, todos sabiam que era o que deveria ser feito. O Lobo, que não tinha nada a ver com isso, havia farejado a corça à distância, e vinha seguindo sangue, pegadas e deformações na vegetação.

Então, em sua jornada, a corça chegou em uma clareira. Foi aí que do meio das árvores o Lobo apareceu. Um único e preciso ataque no pescoço frustrou qualquer tentativa da corça de fugir. Depois de alguns instantes, a neve debaixo do corpo tingiu-se com o carmesim. Vísceras eram partidas e ossos rangiam enquanto o Lobo aproveitava sua refeição. O Lobo possuía hábitos alimentícios bem regrados, não comia sempre que tivesse uma oportunidade, nem ficava mesmo que um dia a passar fome, seu ciclo de alimentação era bem preciso, e como aquele era exatamente o dia para reiniciar o ciclo, o Lobo sentia mais uma vez aquela satisfação, a sensação que ele já havia sentido milhares de vezes e ainda assim nunca havia se cansado de sentir, a de que tudo estava ocorrendo como devia.

O Lobo então sente algo no ar, ele olha em volta, mas não há ninguém ali. Ele não vê nada além de neve e mais neve e mais ao fundo a floresta de onde ele mesmo havia saído. Continua devorando sua comida com vigor, mas passa a perceber um movimento. Era como se a neve se movesse. Movimentos rápidos. Em um pequeno ponto a sua frente, na direção nordeste de seu campo de visão, algo se movia para esquerda. Parava. Em seguida se movia para direita. Tudo naquele pequeno ponto, não maior do que uma melancia. O Lobo não parou de comer, o que quer que fosse aquilo, não o incomodava, apenas manteve a apreensão. De repente, apareceu olhos no que parecia ser neve se mexendo e o Lobo pôde determinar pelas feições que aquilo nada mais era que um Corvo. Um Corvo branco como a neve, que havia mantido seus olhos fechados até então. O corvo não olhava na direção do Lobo, mas o Lobo tinha aquele sentimento, de que o Corvo sabia que ele estava lá e na verdade o observava. Parando para pensar, o Corvo sempre esteve ali parado? Quando ele chegou? Era sabido que corvos eram animais carniçais, estaria o Corvo ali para aproveitar o resto de sua comida? Já estava no final da tarde. Satisfeito, o Lobo resolve deixar o lugar e volta para a floresta de onde tinha saído. Ele não ouve um único bater de asas, mas sentia que estava sendo seguido pelo Corvo. Por algum motivo aquilo não lhe era inesperado. Não incomodado, seguiu seu caminho. Mais a frente, encontrou um córrego no meio da floresta e parou para se refrescar. Quando terminou e se virou, pôde ver o Corvo, que agora exibia uma penugem negra. Ele mal o podia ver, era como se o Corvo vestisse a própria noite. O Lobo só sabia que era o mesmo Corvo porque já tinha gravado o seu cheiro. O Lobo não entendia as estranhezas do Corvo. Não tinha respostas, mas não ter respostas não o trazia ansiedade, tinha confiança que tudo ocorreria como tinha que ocorrer no final.




O Lobo

O Corvo observava o Lobo com escrutínio. Haviam muitas coisas naquele Lobo que chamava-lhe a atenção: ele era grande para um lobo, negro, e com olhos que brilhavam um laranja bruxuleante. Quanto mais conhecia o Lobo, mais o seu estilo de vida o interessava. O Corvo já tinha o visto caçar, espalhar marcas, vigiar o território e algumas vezes uivar na noite. Havia dois meses desde que o Corvo havia encontrado o Lobo e ao acompanhar seus passos de perto, havia aprendido muito sobre a vida de lobo com o canino. Nesse momento não era diferente, o Corvo acompanhava pelo ar enquanto o Lobo disparava atrás de sua presa. Em alguns segundos estava acabado. O Corvo observava o sangue do leitão escorrer entre os dentes do Lobo.

Enquanto a vida do animal se esvaia, o Corvo se perguntava o que vinha passando pela sua mente nesses últimos dois meses, o porquê do Lobo não o temer. No passado, todas as vezes que havia tentado se aproximar de outro ser vivo, mais cedo ou mais tarde o ser começaria a se queixar e a enxotá-lo. De fato, sua presença era sempre vista como a própria morte. Em razão de os corvos estarem sempre próximos para banquetear-se da carcaça quando se tinha uma morte, em algum momento eles passaram a ser vistos como os próprios arautos da morte. Havia alguma coisa sobre olhar para os corvos que mexiam com os seres, como se eles evocassem uma espécie de mensagem Memento Moriana. Além disso, porque na maioria das vezes os corvos apareciam do nada, fazia surgir um dilema de causalidade: a morte traziam os corvos ou os corvos traziam a morte? Depois de um tempo, após tanta aversão de outros, o próprio Corvo decidiu jogar fora tudo sobre si mesmo. O Corvo não tinha problema em ficar sozinho, mas não suportava a ideia de ser desprezado. Já que o grande problema era que ele era um Corvo, deixaria de ser um. Depois de ter a ideia, passou um tempo apenas observando a natureza e os outros seres a fim de encontrar alguma resposta. Ao observar o dia e a noite, por puro entendimento aprendeu a mudar as penas e se camuflar. Após isso, foi então que encontrou o Lobo. No momento do encontro, o Corvo não planejava se mostrar ao canino, no entanto, a reação do Lobo ao vê-lo foi tão incomum que o Corvo decidiu tentar a sorte. Para a sua surpresa, pela primeira vez, o Corvo viu a ausência do medo a si desde que conseguia se lembrar.

No final, ele não sabia por que o Lobo era diferente mas estava certo que mais cedo ou mais tarde chegaria a resposta. Naquele tempo, enquanto observava o Lobo para entender seu comportamento, uma ideia cresceu em si. Tornar-se-ia lobo, pensou. Gostava do que havia visto sobre a vida de lobo e assim finalmente não seria desprezado.

Quando voltou a si, o Lobo já tinha terminado com o leitão. O corvo espera o Lobo voltar a seguir seu caminho, e dessa vez, pela primeira vez desde de que o seguira, o Corvo come os restos do animal no chão.



O corvo e o Lobo

Era manhã. O Lobo se escondia atrás de arbustos e aguardava. O plano deles era simples. O Corvo se revelaria e assustaria o grupo de antílopes, o Lobo então escolheria sua presa e atacaria. O Lobo observava o lugar em que o Corvo estava. Os outros animais não o via, mas o Lobo já tinha se acostumado com a presença do Corvo. O Lobo já tinha visto o Corvo fazer aquilo antes, ele esperava o melhor momento, quando os animais estivessem mais relaxados, apareceria, com isso o Lobo também aprendeu a esperar.

Alguns momentos depois e era hora, tudo estava na mais absoluta calmaria. O jeito como o Corvo acertava o momento e a posição de agir era como se pudesse ver o que aconteceria. O Lobo observa como o Corvo salta assustando os animais que em resposta vêm em sua direção néscios ao que os aguardava. O que estava mais próximo do Lobo agora era o maior deles, o Lobo podia ignorar o animal, que era um pouco maior que ele até, mas ele não o faz. O grande ter sido o que mais se aproximou dele, para ele era justamente como tinha que acontecer e por isso não deixaria aquela chance escapar.

O Lobo pula e monta o animal maior e ataca o pescoço. O antílope tenta correr mas o Lobo havia se colocado de um jeito que quanto mais ele corria mais esforço faria, pois estava carregando o peso total do Lobo consigo. Quando suas forças se esgotam, o antílope desaba. Estava feito. O Lobo vagarosamente começa a saborear a refeição. Em seguida chega o Corvo e se junta ao banquete. Estava claro que os dois andavam como uma verdadeira alcateia. O Lobo havia farejado o grupo de antílopes a distância e o Corvo havia ido na frente como um batedor e informou a situação ao Lobo. As habilidades deles se complementavam. Se um estudioso da natureza se deparasse com aquele caso diria: “Vejam. Esse é o cúmulo do mutualismo!”.

Eles terminam o almoço e seguem caminho. O Corvo segue acompanhando o Lobo, mas agora sentia-se como um. Depois de muito aprender com o Lobo, que parecia apreciar a ideia de ter alguém aprendendo com seus passos, o Corvo vigiava o território, o marcava, e até por si só havia abatido animais muito maiores, demonstrando habilidades de um apto caçador. Naquele momento, não era diferente, depois de comer o antílope eles vão espalhar marcas pelo território. A ideia de um corvo espalhando marcas pelo território pode parecer estranha. Mas de uma forma ou de outra o Corvo o fazia.

Quando chegou a tarde, o Lobo mudou. Sua feição e seu pisar se tornaram graves. Se cada centímetro do seu corpo fosse um instrumento, quando ele movimentasse a melodia ouvida seria a mesma de um réquiem. O corvo sabia o que aquilo significava, era aquele período de novo. Uma vez por mês, no dia em que a lua mais brilhava, assim que caia a tarde, o Lobo adotava uma postura de luto, e quando chegava a noite ele uivava um uivo fúnebre. Em respeito ao momento, o Corvo havia aprendido a deixar o Lobo sozinho naquelas horas. Partiram então caminhos. O corvo achava que aquilo era parte de ser Lobo, queria estar lá, fazer como o canino, mas não compreendia o sentido por trás daquilo. Ele havia aprendido todas as outras coisas a respeito de ser um Lobo, mas por mais que tentasse sabia que não conseguia se sentir como o Lobo naqueles momentos. Depois de voar algum tempo para longe do Lobo, o Corvo começar a ouvir o uivar lânguido. O som cortava como o frio do pior dia do inverno. E ecoou ao longo da noite.

Na manhã seguinte, o Corvo vai ao encontro do Lobo. Assim como das outras vezes que havia presenciado o ocorrido, o Corvo não queria falar sobre o assunto. Parecia algo muito pessoal do Lobo para o Corvo se intrometer. Mas a ideia de nunca poder ser um Lobo o incomodava. O passado em que ele havia sido desprezado ainda o assombrava, aquele era o seu espantalho, e ele só queria evitar aquilo de todas as formas. Por isso, ele junta forças e questiona o comportamento do Lobo naquelas noites. O Lobo então o conta uma história.



A Noite das Noites

Havia uma loba que o Lobo sempre seguia antes. Uma loba de pelo totalmente alvo. O Lobo amava aquela loba, ela era a coisa mais pura e sublime que ele havia encontrado no mundo, e ainda que ele não quisesse, ela exercia grande poder sobre ele. Eles compartilhavam todo tipo de coisas juntos, tanto que as vezes, o Lobo tinha dificuldades em dizer onde o que ele era terminava e ela começava. No entanto, a loba parecia escutar um chamado. As vezes ele a pegava encarando o céu, sonhando em abraçá-lo. Algo a dizia para ser uma fênix, um anjo, qualquer coisa que voasse e tivesse brilho. Apaixonado, o Lobo não deu tanta importância para aquelas coisas, diminuindo o problema, certo que estava tudo sobre seu controle.

Certa vez, o Lobo estava mais uma vez com a Loba. Naquela noite, estavam sozinhos numa montanha, era a montanha mais alta de toda a região e naquele dia a lua brilhava como nunca. Tudo naquela noite parecia conspirar para aproximá-los ainda mais, se é que isso realmente era possível. Fosse como fosse o Lobo sentiu como se eles nunca tivessem se amado tanto. Eles rolaram, correram e brincaram por horas a fio. O Lobo vibrava em seu íntimo com como o sorriso da loba era tão honesto e como ele mal teve tempo de se recolher do rosto dela naquela noite. Em um instante, o Lobo se distraiu ao preparar uma surpresa para a loba, foi aí que a loba disparou em direção ao despenhadeiro e quando o Lobo retorna sua atenção para ela, a vê saltar. Assim, num instante, toda a alegria do momento havia ido junto com ela.

O Lobo ficou arrasado. Na hora, sua vontade era de pular atrás dela. Ele sentia que tinha sido roubado de uma grande parte de si. Mas ele não pulou. Não pulou. E isso por si só requereu toda força de si. Ele desceu a montanha se rastejando, pois sentia como se todo seu ser pesasse uma tonelada. Na sua cabeça somente dor e dor. Não culpava a Loba, como poderia? Ela era tão pura e a amava tanto que tinha certeza que se ela pudesse ter escolhido ficar, teria assim feito. Ele amaldiçoava aonde tinha chegado. Culpava as circunstâncias. Não queria estar naquele lugar, naquele momento, naquele corpo. Quando finalmente chegou no sopé da montanha, não conseguiu se forçar a ir vê-la, vagou por sabe-se lá quanto tempo e apagou.

Assim que o Lobo acordou, a primeira memória que veio à cabeça foi a cena da Loba saltando para a morte e o senso de derrota voltou com toda força. Estava num espaço entre as raízes de uma árvore e lá ficou. Por horas. Dias. Semanas. No momento em que sentiu que lhe faltavam forças e sua vida ia embora, num último esforço decidiu ir até onde a Loba tinha se atirado, para descansar ao seu lado.

Ao caminhar com dificuldade, se dá conta que é noite. Ficar muito tempo num lugar com pouca iluminação e preso em si mesmo tinha aumentado sua sensibilidade à luz. Isso também, acima de tudo, chamava sua atenção para a lua. Ela brilhava tanto quanto na noite que ele não conseguia esquecer.

Parando pra pensar, a não ser que determinasse onde estava, não conseguiria determinar onde ficava aquela montanha. Caminhou sem rumo até que encontrou um riacho. Ao vê seu próprio reflexo, não identifica o que vê. Estava muito malnutrido e havia perdido parte do pelo. Ele bebe do rio, e com a água vêm também uma torrente de memórias daquele lugar. Ele conhecia aquele lugar, fazia parte do seu território, no entanto aquilo queria dizer que estava bem distante do seu objetivo. Se quisesse sobreviver a viagem teria que se alimentar. Começou então a procurar pistas até que encontrou um rastro. Já havia feito aquilo milhares de vezes durante sua vida, mas nunca sentira tanto prazer em fazer aquilo como daquela vez. Gostava de caçar, a forma como uma pista levava a outra o instigava. No fim, abateu uma lebre, logo antes de ela voltar e se esconder em sua toca.

Sob a luz do luar, devorou com vigor o que parecia a refeição mais deliciosa de sua vida. Quando terminou, uma mistura de sentimentos o preenchia. Se logo ia morrer, porque se sentia tão vivo? Afastou os pensamentos. Com energia suficiente, seguiu seu caminho.

Quando finalmente chegou até a montanha, sua respiração acelerou, as memórias daquela noite ficaram vivas de novo em si. Lembrava do cheiro dela, de como se amavam e se divertiam e depois, depois ela correndo e pulando. Eufórico, começou a subida, se atiraria de lá assim como sua amada. Conforme subia, mais acelerava, tanto que próximo do desfiladeiro nunca pensara ser possível correr tão rápido. Cada parte do seu corpo vibrando com a experiência. No último momento, ele para bruscamente ao olhar uma última vez para a lua. Era ela, ele pensou, ela tinha se tornado aquela coisa brilhante que voava no céu. Somente a lua conseguiria comportar o seu grande ser, ou brilhar aquele distinto brilho branco. Quanto mais pensava na ideia mais lhe parecia real. Com a epifania veio um uivo. Um uivo longo. Um uivo que gritava “Ei, eu ainda estou aqui, me leve com você aonde quer que vá”, e ao mesmo tempo um uivo de aceitação construído pela ideia que ela estava bem e pela esperança de um dia vê-la novamente.

Como nunca teve a coragem de ver o corpo, no íntimo o lobo não sabia de fato se a Loba havia se tornado a lua ou não, mas de uma coisa ele sabia, se ele sequer duvidasse, abandonaria tudo o que tinha sido até agora e deixaria de ser ele mesmo, e aquilo era pior que morrer. No final percebeu que não ter ido ver o corpo era o que devia acontecer e estava contente de ter sido assim.

Ao ouvir a história, usando de toda sua empatia, o Corvo compreendeu na mesma hora. O Lobo não o temia, porque não tinha medo da morte, na verdade no dia que ela viesse a saudaria. Por mais que a dor da perda do Lobo doesse, pois o Corvo sabia que doía, talvez até mais que sua própria dor, o Lobo havia se reconciliado consigo mesmo e por causa disso não se destruiu. Olhando para si e pensando no seu medo, o Corvo pôde notar, estava cometendo o mesmo erro que o Lobo havia cometido, estava amaldiçoando onde tinha chegado e abandonando a si mesmo. Quando ele lembra do tempo que tentou ser um Lobo isso fica claro para ele, estava mentindo para si, pois somente havia conseguido ajudar o Lobo nas caçadas por voar, pensar, e observar como um Corvo, porque no fim era aquilo que ele era. A partir daí, os dois continuaram se ajudando nas caçadas.






Nota: Ao entender o Lobo, o Corvo pôde entender a si mesmo e pela primeira vez, ainda que os outros seres continuassem o desprezando estava satisfeito com quem era, porque ele era o que era. Esse é mais um conto próprio sobre alteridade, empatia e principalmente aceitação que quero compartilhar com você. Depois de vários anos com a ideia da história na mente, conseguir finalmente colocá-la no papel me deixa muito grato. Por isso, gostaria de agradecer a ajuda de um amigo, sem o qual a história não teria surgido na minha cabeça pra começo de conversa. Como evoca a mensagem na biografia do blog, para que essa ideia não seja depositada na biblioteca do vazio, a compartilho com quem quer que ela chegar!
*A imagem usada no texto é da artista Carol Cavalaris e pode ser encontrada aqui

domingo, 6 de setembro de 2015

Occultus - Parte 2



- 2 -

25 anos antes...

- Anda, Kevin, me dá a droga da lanterna! - diz Joseph com uma expressão de raiva nos olhos estendendo a mão impaciente enquanto segura a porta do porão com a outra mão.

- Calma! - responde Kevin girando a lanterna para entregar ao amigo.

- Tem tanto tempo que essa casa está abandonada que não me arriscaria em acender nada por aqui. Não quero morrer queimado - diz enquanto começa a descer as escadas. Cada degrau que pisam range alto como se fosse se quebrar.

- Queimado? Como acender uma luz pode te matar? - pergunta Kevin intrigado.

- E se tiver um curto circuito e a casa pegar fogo? - diz sem olhar para trás.

- Deixe de ser idiota. Mortos não usam luz. A energia daqui foi cortada há mais de cem anos, desde que a moradora morreu.

- Eu sei da história - responde Joseph num tom sarcástico - Dizem que ela era maluca, que os malignos viviam com ela, blá, blá, blá. Por isso ninguém tem coragem nem pra morar aqui, nem pra derrubar o lugar. A casa simplesmente ficou aqui, abandonada.

- Então que merda a gente tá fazendo aqui!? Eu devia ter trazido mais uma lanterna.

- Deixa de ser medroso! - Joseph olha para o amigo com uma certa desaprovação no olhar - Estamos aqui porque não acredito nestas besteiras e porque adoro uma aventura. Você não?

- Tá bom, não me olhe assim. Vamos terminar logo e sair daqui - responde Kevin gesticulando com a mão indicando pressa.

- Olha só! - diz apontando para um objeto grande coberto por um lençol - O que será isso aqui? - e puxa o lençol. Um belo telescópio dourado deixa os dois vislumbrados. A luz da lanterna reflete em sua superfície que, apesar dos anos, ainda permanece brilhante e polida.

- O que é isso? - pergunta Kevin.

- É um telescópio, idiota. Parece que nunca viu um!

- Nunca vi assim, de verdade, nem tão grande. Vamos levar ele?

- Agora não. Não podemos deixar ninguém ver a gente sair daqui com isso debaixo do braço. Além do mais, isso deve ser muito pesado. Vamos precisar de ajuda pra carregar.

- O que vamos fazer?

- Venha, me ajude a colocar ele perto daquela janelinha. Poderemos ver alguma coisa, talvez.

Ao fazer a volta no telescópio, Joseph chuta alguma coisa no chão. Apontando a lanterna ele percebe que chutou um livro. Um livro muito grande fechado com uma espécie de fechadura.

- Um livro! - diz Kevin com ar de surpresa.

- E dos grandes! Isso eu vou levar - diz assoprando a poeira em sua capa.

- Acho melhor a gente ir embora, Joseph. Já vai escurecer e minha mãe vai me procurar.

- Tudo bem. Me ajude a cobrir o telescópio. A gente volta depois.

Eles cobrem o telescópio e voltam pra casa.

Joseph entra em casa com muito cuidado para que ninguém veja o livro que ele carrega. Sabia que se fosse visto, um interrogatório de perguntas intermináveis teria início e no final das contas, ao descobrir de onde aquilo tinha vindo, seria obrigado a jogar fora. Não. Ele não queria ser visto. Definitivamente não.

Apesar de tomar todo cuidado na hora de abrir a porta, a mãe ouve o barulho e grita de dentro da cozinha:

- Joseph? É você meu filho?

- Sim, mãe. Sou eu - diz ele acelerando o passo em direção às escadas.

- Vá lavar as mãos e desça pra jantar. Já estou botando a mesa!

- Tá bom! - grita ele já no final do lance de escada. Rapidamente ele entra no quarto, tranca a porta atrás de si, joga o livro sobre a escrivaninha que tem ao lado de sua cama e acende a luminária.

O livro tem uma capa grossa e tem um peso considerável. Não havia nada escrito na capa nem nas laterais, ou pelo menos parecia não haver, porém consegue ver um certo relevo ao olhar ele inclinado próximo da luz. Ele resolve pegar uma camiseta suja no chão e molha ela na pia do banheiro. Ao passar a camiseta sobre o livro, um desenho apareceu. O desenho era de uma estrela grande no meio, rodeada de cinco círculos concêntricos. Em cada círculo havia uma bola numa posição distinta, exceto no terceiro círculo, que haviam duas bolas. Uma de cada lado.

- Que estranho - diz ele baixinho para si mesmo. Alguém bate à porta, é sua mãe - Já vou! - disse enquanto levantava. Lavou as mãos no banheiro e desceu para jantar.

No dia seguinte, na escola, Joseph encontra novamente Kevin no intervalo.

- Cadê o livro? Você trouxe ele? - pergunta dando-lhe um leve tapa no ombro.

- Não poderia trazer aquele trambolho pra cá. Ele está escondido lá em casa.

Uma menina se aproxima dos dois.

- Joseph! Como você teve coragem de ir na casa da bruxa sem me chamar! - pergunta ela com uma expressão de raiva.

- Eu não fui na casa da bruxa. Quem te disse isso, Alice? - responde ele demonstrando surpresa.

- Ah, não foi? - diz ela olhando nos olhos de Kevin. Joseph percebe isso e dá um tapa na cabeça dele.

- Quem mandou você contar, seu cabeçudo! Quanto menos gente souber disso, melhor!

- Desculpa! - responde Kevin - Mas Alice pode ajudar a gente!

- Ajudar como?

- Eu sei que a tal da bruxa não foi bruxa coisa nenhuma. Ela foi uma astrônoma - interrompe ela - Acredito que o livro que você achou pode ter as descobertas que ela fez.

- E como você sabe disso? - pergunta Joseph suspendendo uma sobrancelha.

- Meu tio me contou a história dela. Ele não acredita nessas superstições bestas.

- Seu tio? Ele por acaso é astrônomo?

- Não. Ele não é astrônomo, mas ele estuda muito. Ele me contou que ela publicou um texto que não agradou algumas pessoas na época e por isso ela acabou se isolando e morrendo sozinha na casa. Não existe esse negócio de bruxaria, mas muita gente ainda acredita. Por isso ninguém nunca se deu ao trabalho de investigar a casa dela depois que ela morreu.

- É. Eu sei. Minha mãe acredita nesses negócios. Eu escondi o livro lá em casa. Não consigo abrir porque ele tem uma espécie de fechadura.

- Me mostre o livro que eu te ajudo - diz Alice arrumando o cabelo.

- Ajudar?

- Sim. Eu posso abrir a fechadura.

- E posso saber como você sabe fazer isso?

- Claro! Meu tio me ensinou!

Kevin e Joseph se olham incrédulos.

Em casa, depois de almoçar, Joseph se tranca no quarto para analisar o livro. Ele o pega sobre o guarda-roupa e coloca sobre a escrivaninha. Alguém bate à porta e ele levanta para abrir.

- Você conseguiu abrir o livro?

- Fala baixo, Alice! Que merda! - diz ele colocando a cabeça para fora do quarto procurando ver se tinha alguém por lá. Não tinha.

- Nossa. Ele é bem maior do que eu pensava - diz ela analisando a fechadura.

- Imaginava? Como assim?

- Eu pensei que era do tamanho de um diário, ou coisa assim - diz ela sorrindo suspendendo o livro com as duas mãos - É bem pesado! Como você trouxe isso? Debaixo da camisa?

- Não importa. Você consegue abrir a fechadura, Alice, ou vou ter que cortar essa trava?

- Grosso - diz ela franzindo a testa - Me dá um clip aí - pede ela estendendo a mão.

- De que banda? Hahahaha! - diz tentando ser engraçado pra melhorar o clima.

- Idiota. Me dá um clip de papel, um arame! - diz ela com uma certa raiva balançado a mão estendida.

- Tá bom, tá bom! Toma.

Ela desdobra o clip, dobra novamente ao meio e dobra a ponta fazendo uma espécie de chave de um dente só. Insere essa "chave" no buraco e faz alguns movimentos circulares.

- Vai demorar?

- Shhhhh!!! - protesta ela - Eu tenho que ouvir o click.

- Que click? - pergunta Joseph.

Imediatamente ouve-se um click e a trava abre.

- Este click! - ela sorri enquanto abre o livro.

O livro é uma espécie de diário da Laurel Wharton. Ricamente ilustrado com gráficos e desenhos, além de texto e muitas fórmulas matemáticas. Os dois ficam maravilhados com as coisas que estão ali, mas infelizmente não conseguem entender muita coisa, exceto as partes onde a explicação é literal.

- Veja - diz ele apontando - Um desenho igual a da capa. Porque tem duas bolas neste círculo?

- Isso daí são os planetas de nosso sistema seu bobo.

- Eu sei que são os planetas, mas aqui tem seis bolas.

- Peraí. Esse desenho está mostrando que tem um outro planeta atrás do Sol? - diz ela franzindo a testa.

- Como assim? O que ela diz aí sobre isso?

- Não sei. Vou ter que ler tudo pra saber. Me empresta o livro?

- Tá maluca? Não posso deixar você sair daqui com isso!

- Então vou pegar minha câmera. Tiro umas fotos desse material pra estudar em casa.

Alice levanta e sai quase correndo pela porta para ir buscar a câmera. Joseph olha pela janela e vê sua amiga sair em disparada pela porta de sua casa. Alguém bate na porta do quarto, ele levanta para abrir.

- Oi, Kevin - diz Joseph virando de costas para se sentar novamente.

- Aquele foguete que saiu daqui era Alice? - disse ele apontando para a porta.

- Era sim. Ela disse que ia buscar a câmera.

- Uau, vocês conseguiram abrir o livro? - diz ele se aproximando.

- Conseguimos sim, mas não dá pra entender muita coisa do que está escrito. Mas tem um desenho aqui - diz folheando o livro até a página que tem o desenho do sistema planetário - que mostra uma coisa interessante - e aponta para o desenho.

- Porque tem duas bolas neste círculo, mas uma só em todos os outros? - pergunta coçando a cabeça.

- Nós nos perguntamos a mesma coisa. Aparentemente esta bola aqui somos nós e esta outra bola aqui é um outro planeta atrás do Sol.

- Atrás do Sol? Você é maluco? De onde você tirou essa idéia?

- Alice.

- Claro. Só podia ser idéia dela - diz Kevin balançando a cabeça.

- Mas eu acho que ela está certa. É o que faria sentido.

- Não, Joseph. Essa bola daí pode ser uma coisa que ela achava que estava lá. Não significa que tem alguma coisa lá.

- Bem. Isso também faz sentido. Mas Alice disse que a mulher era astrônoma. Ela não ia desenhar isso daqui se não soubesse do que se tratava.

- Tá, tá, tudo bem. Mesmo assim acho meio louca essa história. Todos os planetas de nosso sistema já foram descobertos, a gente aprendeu isso na escola.

- As grandes descobertas foram feitas por aqueles que não sabiam que tudo já havia sido descoberto - disse Alice de pé atrás dos dois.

- Já? - Os dois se olharam perplexos - Como você foi em casa e voltou tão rápido?

- Eu tinha esquecido a câmera no carro de meu tio e por acaso ele estava passando aqui na frente quando saí de sua casa. Você não viu a pickup dele?

- Humm... Então seu tio tem uma pickup? - perguntou Joseph suspendendo uma sobrancelha e alisando o próprio queixo.

- Tem sim, porque? - questionou Alice pondo as duas mãos na cintura.

- Você está disposta a participar de uma aventura? A maior aventura de sua vida!

- Que tipo de pergunta é essa? Você sabe que eu amo aventuras! - responde ela.

- Então feche a porta do quarto, puxe uma cadeira e vamos conversar.

[Continua...]

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Occultus - Parte 1


Ao leitor

A história a seguir não se passa na Terra, mas num sistema planetário de uma galáxia que podemos simplesmente ignorar a localização. Apesar disso, por questões práticas, farei uso de elementos comuns para nós com o objetivo de facilitar a compreensão e a imersividade da narrativa.

De nada adianta inventar nomes estrambólicos para elementos similares daquela civilização como veículos automotores por exemplo. Aqui os chamamos de "carro", por lá talvez eles os chamem de "linspput". A tecnologia que os faz movimentar pode não ser a mesma que o nosso equivalente, mas este detalhe é irrelevante e não muda o fato de que o personagem foi embora usando um veículo. Assim quando eu disser que "Kevin entrou no carro e foi embora...", você saberá que ele está usando um veículo automotor equivalente ao nosso "carro". A mesma coisa vale para todos os outros elementos como ferramentas, roupas, sistemas de medida ou até mesmo o idioma que eles falam. Achei por bem focar mais no enredo do que gastar energia criando um universo alienígena inteiro apenas para colocar meus personagens dentro.

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Telescópio

Todd Hazelwood inventou o telescópio e maravilhou a todos no seu tempo. As observações que antes se limitavam a pequenos pontos brilhantes que o olho podia ver agora poderiam se estender ainda mais no horizonte através da abóboda do céu.

Muitos reclamaram a respeito da invenção alegando ser obra de alguma entidade maligna, já que observar coisas além de sua capacidade biológica era certamente uma invasão do território dos Antes, que seria o grupo de forças espectrais que supostamente criaram o Universo, o planeta Grindan e o Sol que o iluminava.

Em suas observações, Todd percebeu que haviam corpos errantes pelo cosmos. Ele se deu conta disso ao não se limitar a apenas a olhar o céu, mas a mapear a posição de todos aqueles pontos brilhantes. Alguns deles não seguiam o restante, se deslocando de forma até que meio louca, em zigue-zague. A matemática necessária para desvendar tal mistério ainda não existia, então no resto de sua vida ele se limitou a criar um vasto banco de dados com a posição de todos aqueles pontos brilhantes que seu maravilhoso telescópio lhe permitiu enxergar.

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Laurel Wharton, nasceu cerca de cento e vinte anos depois da morte de Todd e desde cedo demonstrou interesse pela ciência do espaço. Aos quinze anos, utilizando uma versão mais aprimorada do telescópio, conseguiu ver nitidamente que aqueles corpos errantes eram na verdade, planetas. Aos vinte anos, já tinha desenvolvido a matemática necessária para calcular a trajetória daqueles corpos e por causa disso a Lei Universal da Gravitação é atribuída a ela até hoje.

Sua carreira como cientista estava indo a todo vapor até que ela publicou um texto um tanto quanto controverso. Após estudar atentamente a trajetória de todos os planetas, ela concluiu que todos eles orbitavam em torno daquele Sol que iluminava seu mundo. Imediatamente, todas as organizações religiosas publicaram duras críticas a respeito destas afirmações e até mesmo a comunidade científica ficou com um pé atrás, por temer profundamente a ira dos Antes. Naquela época, o misticismo ainda dominava o mundo científico e por causa disso pouco avanço científico se fez. Laurel foi desacreditada por contrariar as escrituras que "mostravam" claramente que tudo girava em torno de Grindan e suas descobertas deixaram de ser publicadas no meio científico.

Laurel morreu aos 85 anos, sozinha em sua casa.

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- 1 -

A excitação de toda equipe era fantástica. Pela primeira vez estavam prestes a pisar em outro planeta. As missões não tripuladas anteriores mostraram que a temperatura e a atmosfera daquele mundo era muito similar ao deles, porém curiosamente estéril. As imagens das sondas mostravam um céu de cor diferente, uma névoa constante porém não muito densa e apenas rochas. Nada de lagos, rios, nem oceanos. Somente rochas.

A tarefa de transmitir dados daquele planeta em particular exigiu um trabalho fora do comum. A equipe liderada pela engenheira Alice Olivetree desenvolveu a solução baseada no fenômeno de reflexão das ondas. A mesma solução acabou sendo utilizada no próprio planeta que vive, permitindo assim a comunicação digital global. Esta solução consiste em um aparato posto em órbita, dotado de uma antena em formato parabólico que reflete as ondas eletromagnéticas que nele incidem. Um refletor orbital. A idéia, aparentemente simples, rendeu-lhe diversos prêmios e reconhecimento no meio científico, tornou possíveis as missões Occultus 1 e 2, além da missão tripulada Seeker, que estava a ponto de ter sua etapa mais importante concluída.

- Preparando para estacionar Seeker 1 na órbita mais alta. - diz a voz do comandante Harrison ecoando pela sala de controle da unidade espacial. Um local cheio de pesquisadores, terminais de computador e telas, uma gigante no meio da parede e outras menores ao redor, onde muitos dados vindo da nave principal eram processados e vistos numa velocidade incrível.

Por causa da distância, toda comunicação tinha um delay de 16 minutos entre a transmissão e a recepção. As imagens das 15 câmeras instaladas na nave principal e na secundária transmitia ininterruptamente a cerca de 40 minutos, tão logo iniciou-se a aproximação da órbita mais alta. Neste momento, a nave preparava-se para entrar em órbita estável e permitir a descida do módulo planetário Seeker 2, onde iam dois cientistas. O comandante Harrison ficaria na nave aguardando o retorno dos dois em cerca de seis horas.

Esta missão, além de marcar um feito histórico, iria ser o começo de um estudo mais completo para permitir a construção de uma base permanente objetivando uma pesquisa mais ampla deste recém descoberto planeta. Um grande avanço para a ciência seria advindo desta missão. Para Joseph, astrônomo chefe que liderou todas as missões envolvendo o planeta Occultus, era o momento mais importante para sua espécie e ele estava igualmente ansioso, talvez o mais ansioso de todos, provavelmente por ser ele um dos personagens principais na descoberta da existência desde planeta.

-Órbita estabilizada com sucesso! - disse a voz do comandante ecoando pela sala. Joseph e Alice se olharam com um sorriso amplo no rosto. Alice queria pular de alegria, mas tinha que se conter para não parecer boba diante de toda a equipe, mas dava para ver um pequeno brilho em seu olhar, o brilho de uma lágrima. O brilho da emoção.

Os dois astronautas desprenderam seus cintos e começaram a se preparar para adentrar ao módulo Seeker 2 para iniciar a descida. Checaram todos os seus equipamentos, entraram na câmara de descompressão que já estava com a porta aberta e puseram seus capacetes. A informação sobre o status da roupa e todos os sensores que ela possuía podia ser vista refletida no visor do capacete: Oxigênio, pressão interna, vedação da junta do capacete, temperatura corporal, batimentos cardíacos, pressão sanguínea.

-Yemane? - Ela ouve a voz do comandante Harrison dentro de seu capacete. Observa as luzes verdes que brilham em seu painel interno e responde - Tudo OK!

-Joris? - Ele também olha para seu painel - Tudo OK!

-Ok. Iniciando processo de nivelamento.

Assim que Harrison pressiona o botão em seu painel a porta por onde os astronautas entraram na câmara começa a se fechar. Os dois estão bem tensos agora, pois estão prestes a fazer o que nenhum habitante de Grindam jamais imaginou ser possível. Yemane começa a se lembrar de todo o processo que passou na academia espacial desde o início das missões Occultus há cerca de 10 anos. Lembrou-se de toda emoção que sentiu a cada etapa que conseguiu superar e do apoio incondicional de sua família -Seus batimentos estão alterados - alertou a voz em seu capacete. Ela não podia enxugar as lágrimas por causa do visor, então foi com os olhos cheios de água que ela passou pela escotilha que agora se abria à sua frente. Os dois entraram no módulo Seeker 2.

-Vamos fazer a inicialização dos sistemas? - perguntou Joris.

-Não é necessário - respondeu Harrison pelo microfone - A nave já está pronta para partir. Basta que se acomodem.

Os dois sentaram-se nas poltronas que ficavam diante do painel de controle. Havia uma grande janela de vidro reforçado em sua frente que os permitia ver o planeta logo abaixo. Sua visão era ao mesmo tempo maravilhosa e aterradora. Sua coloração era de um cinza escuro quase negro.

-Parece que vamos mergulhar em um abismo de escuridão - disse Yemane.

-Não se preocupe. Apesar da aparência, o planeta é bem iluminado de dia. Quer dizer, bem não, mas a luz é suficiente - respondeu Joris.

-Eu sei. Eu lembro das fotos e vídeos das sondas que vieram antes de nós. Acho que só estou insegura.

-Mas você esperou tanto por isso, Yemane. Nós esperamos tanto por isso.

-Atenção - diz o comandante dentro de seus capacetes - Preparar para desacoplar em 5... 4... 3... 2... 1... - Um forte solavanco sacode a nave. Joris assume o comando do manche em sua frente.

-Iniciando os motores, preparando para entrada - diz Joris pressionando um botão no painel que faz aparecer um desenho na janela de vidro. O desenho mostrava exatamente onde era a janela de reentrância, seu trabalho era basicamente guiar a nave seguindo aquelas indicações. A aceleração violenta os fez ficar praticamente grudados nas poltronas. Assim que chegaram a velocidade final, Joris iniciou a descida.

Assim que começou a entrar em contato com a atmosfera, a nave começou a vibrar. Inicialmente fraco, mas quanto mais eles mergulhavam, mais violento ficava. As proteções sob a nave começaram a incandescer e era possível aos dois ver as fagulhas passando pelo vidro. Yemane apertava fortemente os braços da poltrona pelo nervosismo, mas não fechou os olhos. Queria ver tudo, queria sentir tudo. As fagulhas aumentaram e se transformaram numa parede de chamas que cobriram toda as janelas. Subitamente o tremor cessou e o fogo desapareceu. Eles tinham adentrado no planeta.

Joris reduzia a velocidade da nave gradualmente e agora ele procurava pelo local de pouso, que também aparecia como um desenho na janela de vidro. Não era possível ver a superfície direito. Abaixo deles uma névoa se espalhava pela superfície de todo o planeta, mas à medida que se aproximavam a visibilidade melhorava -Estranho isso, não é? De longe parece uma névoa densa. Mas de perto não é bem assim - disse ele.

-Sim - respondeu Yemane - por causa disso o escaneamento orbital foi possível.

-Veja! Alí está o ponto de pouso - disse Joris apontando para uma planície logo à frente deles.

Ele baixou os amortecedores e redirecionou os propulsores para baixo. Assim ele pode planar sobre a área indicada e começar a descida.

-Todos os sistemas ok - disse o comandate Harrison - Posso ver daqui que está tudo sob controle.

-Sim - respondeu Joris - Estamos concluindo o pouso.

A nave pousou com um pequeno solavanco. Muito menor que o primeiro quando a nave se desprendeu da principal. Assim que ela parou, os dois trataram logo de destravar os cintos e se levantaram. A sensação de sentir a gravidade de novo, depois de oito meses no espaço era reconfortante.

-Verifiquem novamente seus trajes antes de sair - disse o comandante.

-Porque temos que usar trajes num planeta que parece com o nosso? A atmosfera não é igual? - perguntou Joris.

-A atmosfera é igual, mas por acaso você sabe se tem algum fator biológico desconhecido de nós aqui? Robôs não ficam doentes, além disso as sondas não vieram preparadas para identificar microorganismos potenciais.

-Tudo bem. Entendi.

Yemane se prepara para sair. Pega sua maleta e se posiciona ao lado da porta traseira do módulo. Num painel pequeno um botão brilhante com a inscrição ABRIR aciona a abertura da porta. Assim que as duas placas de metal começam a se afastar, uma escuridão penetra na nave através da fenda como uma fumaça negra e atravessa os dois tocando diretamente em suas almas. Os dois não tem tempo de reagir. Não há gritos. Não há fuga. Não há nada.

Dois corpos inertes caem ao chão.

Silêncio.

[Continua...]