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sexta-feira, 18 de setembro de 2020

O corvo e o Lobo

 



O Corvo

O Lobo passara as últimas horas perseguindo o rastro de sua presa. Uma corça havia sido atacada ao tentar cruzar um lago congelado na companhia de seu rebanho. De um buraco no gelo no lago, uma criatura saltara e havia abocanhado o animal, contudo o ataque não havia sido preciso o suficiente para puxar o cervídeo para água. A corça seguia viva, mas ferida a ponto de deixar um rastro de sangue a cada distância de por volta de 1000 passos, e por isso havia sido separada do grupo. A sua condição atrairia predadores e pelo bem do conjunto, numa espécie de acordo sem palavras, todos sabiam que era o que deveria ser feito. O Lobo, que não tinha nada a ver com isso, havia farejado a corça à distância, e vinha seguindo sangue, pegadas e deformações na vegetação.

Então, em sua jornada, a corça chegou em uma clareira. Foi aí que do meio das árvores o Lobo apareceu. Um único e preciso ataque no pescoço frustrou qualquer tentativa da corça de fugir. Depois de alguns instantes, a neve debaixo do corpo tingiu-se com o carmesim. Vísceras eram partidas e ossos rangiam enquanto o Lobo aproveitava sua refeição. O Lobo possuía hábitos alimentícios bem regrados, não comia sempre que tivesse uma oportunidade, nem ficava mesmo que um dia a passar fome, seu ciclo de alimentação era bem preciso, e como aquele era exatamente o dia para reiniciar o ciclo, o Lobo sentia mais uma vez aquela satisfação, a sensação que ele já havia sentido milhares de vezes e ainda assim nunca havia se cansado de sentir, a de que tudo estava ocorrendo como devia.

O Lobo então sente algo no ar, ele olha em volta, mas não há ninguém ali. Ele não vê nada além de neve e mais neve e mais ao fundo a floresta de onde ele mesmo havia saído. Continua devorando sua comida com vigor, mas passa a perceber um movimento. Era como se a neve se movesse. Movimentos rápidos. Em um pequeno ponto a sua frente, na direção nordeste de seu campo de visão, algo se movia para esquerda. Parava. Em seguida se movia para direita. Tudo naquele pequeno ponto, não maior do que uma melancia. O Lobo não parou de comer, o que quer que fosse aquilo, não o incomodava, apenas manteve a apreensão. De repente, apareceu olhos no que parecia ser neve se mexendo e o Lobo pôde determinar pelas feições que aquilo nada mais era que um Corvo. Um Corvo branco como a neve, que havia mantido seus olhos fechados até então. O corvo não olhava na direção do Lobo, mas o Lobo tinha aquele sentimento, de que o Corvo sabia que ele estava lá e na verdade o observava. Parando para pensar, o Corvo sempre esteve ali parado? Quando ele chegou? Era sabido que corvos eram animais carniçais, estaria o Corvo ali para aproveitar o resto de sua comida? Já estava no final da tarde. Satisfeito, o Lobo resolve deixar o lugar e volta para a floresta de onde tinha saído. Ele não ouve um único bater de asas, mas sentia que estava sendo seguido pelo Corvo. Por algum motivo aquilo não lhe era inesperado. Não incomodado, seguiu seu caminho. Mais a frente, encontrou um córrego no meio da floresta e parou para se refrescar. Quando terminou e se virou, pôde ver o Corvo, que agora exibia uma penugem negra. Ele mal o podia ver, era como se o Corvo vestisse a própria noite. O Lobo só sabia que era o mesmo Corvo porque já tinha gravado o seu cheiro. O Lobo não entendia as estranhezas do Corvo. Não tinha respostas, mas não ter respostas não o trazia ansiedade, tinha confiança que tudo ocorreria como tinha que ocorrer no final.




O Lobo

O Corvo observava o Lobo com escrutínio. Haviam muitas coisas naquele Lobo que chamava-lhe a atenção: ele era grande para um lobo, negro, e com olhos que brilhavam um laranja bruxuleante. Quanto mais conhecia o Lobo, mais o seu estilo de vida o interessava. O Corvo já tinha o visto caçar, espalhar marcas, vigiar o território e algumas vezes uivar na noite. Havia dois meses desde que o Corvo havia encontrado o Lobo e ao acompanhar seus passos de perto, havia aprendido muito sobre a vida de lobo com o canino. Nesse momento não era diferente, o Corvo acompanhava pelo ar enquanto o Lobo disparava atrás de sua presa. Em alguns segundos estava acabado. O Corvo observava o sangue do leitão escorrer entre os dentes do Lobo.

Enquanto a vida do animal se esvaia, o Corvo se perguntava o que vinha passando pela sua mente nesses últimos dois meses, o porquê do Lobo não o temer. No passado, todas as vezes que havia tentado se aproximar de outro ser vivo, mais cedo ou mais tarde o ser começaria a se queixar e a enxotá-lo. De fato, sua presença era sempre vista como a própria morte. Em razão de os corvos estarem sempre próximos para banquetear-se da carcaça quando se tinha uma morte, em algum momento eles passaram a ser vistos como os próprios arautos da morte. Havia alguma coisa sobre olhar para os corvos que mexiam com os seres, como se eles evocassem uma espécie de mensagem Memento Moriana. Além disso, porque na maioria das vezes os corvos apareciam do nada, fazia surgir um dilema de causalidade: a morte traziam os corvos ou os corvos traziam a morte? Depois de um tempo, após tanta aversão de outros, o próprio Corvo decidiu jogar fora tudo sobre si mesmo. O Corvo não tinha problema em ficar sozinho, mas não suportava a ideia de ser desprezado. Já que o grande problema era que ele era um Corvo, deixaria de ser um. Depois de ter a ideia, passou um tempo apenas observando a natureza e os outros seres a fim de encontrar alguma resposta. Ao observar o dia e a noite, por puro entendimento aprendeu a mudar as penas e se camuflar. Após isso, foi então que encontrou o Lobo. No momento do encontro, o Corvo não planejava se mostrar ao canino, no entanto, a reação do Lobo ao vê-lo foi tão incomum que o Corvo decidiu tentar a sorte. Para a sua surpresa, pela primeira vez, o Corvo viu a ausência do medo a si desde que conseguia se lembrar.

No final, ele não sabia por que o Lobo era diferente mas estava certo que mais cedo ou mais tarde chegaria a resposta. Naquele tempo, enquanto observava o Lobo para entender seu comportamento, uma ideia cresceu em si. Tornar-se-ia lobo, pensou. Gostava do que havia visto sobre a vida de lobo e assim finalmente não seria desprezado.

Quando voltou a si, o Lobo já tinha terminado com o leitão. O corvo espera o Lobo voltar a seguir seu caminho, e dessa vez, pela primeira vez desde de que o seguira, o Corvo come os restos do animal no chão.



O corvo e o Lobo

Era manhã. O Lobo se escondia atrás de arbustos e aguardava. O plano deles era simples. O Corvo se revelaria e assustaria o grupo de antílopes, o Lobo então escolheria sua presa e atacaria. O Lobo observava o lugar em que o Corvo estava. Os outros animais não o via, mas o Lobo já tinha se acostumado com a presença do Corvo. O Lobo já tinha visto o Corvo fazer aquilo antes, ele esperava o melhor momento, quando os animais estivessem mais relaxados, apareceria, com isso o Lobo também aprendeu a esperar.

Alguns momentos depois e era hora, tudo estava na mais absoluta calmaria. O jeito como o Corvo acertava o momento e a posição de agir era como se pudesse ver o que aconteceria. O Lobo observa como o Corvo salta assustando os animais que em resposta vêm em sua direção néscios ao que os aguardava. O que estava mais próximo do Lobo agora era o maior deles, o Lobo podia ignorar o animal, que era um pouco maior que ele até, mas ele não o faz. O grande ter sido o que mais se aproximou dele, para ele era justamente como tinha que acontecer e por isso não deixaria aquela chance escapar.

O Lobo pula e monta o animal maior e ataca o pescoço. O antílope tenta correr mas o Lobo havia se colocado de um jeito que quanto mais ele corria mais esforço faria, pois estava carregando o peso total do Lobo consigo. Quando suas forças se esgotam, o antílope desaba. Estava feito. O Lobo vagarosamente começa a saborear a refeição. Em seguida chega o Corvo e se junta ao banquete. Estava claro que os dois andavam como uma verdadeira alcateia. O Lobo havia farejado o grupo de antílopes a distância e o Corvo havia ido na frente como um batedor e informou a situação ao Lobo. As habilidades deles se complementavam. Se um estudioso da natureza se deparasse com aquele caso diria: “Vejam. Esse é o cúmulo do mutualismo!”.

Eles terminam o almoço e seguem caminho. O Corvo segue acompanhando o Lobo, mas agora sentia-se como um. Depois de muito aprender com o Lobo, que parecia apreciar a ideia de ter alguém aprendendo com seus passos, o Corvo vigiava o território, o marcava, e até por si só havia abatido animais muito maiores, demonstrando habilidades de um apto caçador. Naquele momento, não era diferente, depois de comer o antílope eles vão espalhar marcas pelo território. A ideia de um corvo espalhando marcas pelo território pode parecer estranha. Mas de uma forma ou de outra o Corvo o fazia.

Quando chegou a tarde, o Lobo mudou. Sua feição e seu pisar se tornaram graves. Se cada centímetro do seu corpo fosse um instrumento, quando ele movimentasse a melodia ouvida seria a mesma de um réquiem. O corvo sabia o que aquilo significava, era aquele período de novo. Uma vez por mês, no dia em que a lua mais brilhava, assim que caia a tarde, o Lobo adotava uma postura de luto, e quando chegava a noite ele uivava um uivo fúnebre. Em respeito ao momento, o Corvo havia aprendido a deixar o Lobo sozinho naquelas horas. Partiram então caminhos. O corvo achava que aquilo era parte de ser Lobo, queria estar lá, fazer como o canino, mas não compreendia o sentido por trás daquilo. Ele havia aprendido todas as outras coisas a respeito de ser um Lobo, mas por mais que tentasse sabia que não conseguia se sentir como o Lobo naqueles momentos. Depois de voar algum tempo para longe do Lobo, o Corvo começar a ouvir o uivar lânguido. O som cortava como o frio do pior dia do inverno. E ecoou ao longo da noite.

Na manhã seguinte, o Corvo vai ao encontro do Lobo. Assim como das outras vezes que havia presenciado o ocorrido, o Corvo não queria falar sobre o assunto. Parecia algo muito pessoal do Lobo para o Corvo se intrometer. Mas a ideia de nunca poder ser um Lobo o incomodava. O passado em que ele havia sido desprezado ainda o assombrava, aquele era o seu espantalho, e ele só queria evitar aquilo de todas as formas. Por isso, ele junta forças e questiona o comportamento do Lobo naquelas noites. O Lobo então o conta uma história.



A Noite das Noites

Havia uma loba que o Lobo sempre seguia antes. Uma loba de pelo totalmente alvo. O Lobo amava aquela loba, ela era a coisa mais pura e sublime que ele havia encontrado no mundo, e ainda que ele não quisesse, ela exercia grande poder sobre ele. Eles compartilhavam todo tipo de coisas juntos, tanto que as vezes, o Lobo tinha dificuldades em dizer onde o que ele era terminava e ela começava. No entanto, a loba parecia escutar um chamado. As vezes ele a pegava encarando o céu, sonhando em abraçá-lo. Algo a dizia para ser uma fênix, um anjo, qualquer coisa que voasse e tivesse brilho. Apaixonado, o Lobo não deu tanta importância para aquelas coisas, diminuindo o problema, certo que estava tudo sobre seu controle.

Certa vez, o Lobo estava mais uma vez com a Loba. Naquela noite, estavam sozinhos numa montanha, era a montanha mais alta de toda a região e naquele dia a lua brilhava como nunca. Tudo naquela noite parecia conspirar para aproximá-los ainda mais, se é que isso realmente era possível. Fosse como fosse o Lobo sentiu como se eles nunca tivessem se amado tanto. Eles rolaram, correram e brincaram por horas a fio. O Lobo vibrava em seu íntimo com como o sorriso da loba era tão honesto e como ele mal teve tempo de se recolher do rosto dela naquela noite. Em um instante, o Lobo se distraiu ao preparar uma surpresa para a loba, foi aí que a loba disparou em direção ao despenhadeiro e quando o Lobo retorna sua atenção para ela, a vê saltar. Assim, num instante, toda a alegria do momento havia ido junto com ela.

O Lobo ficou arrasado. Na hora, sua vontade era de pular atrás dela. Ele sentia que tinha sido roubado de uma grande parte de si. Mas ele não pulou. Não pulou. E isso por si só requereu toda força de si. Ele desceu a montanha se rastejando, pois sentia como se todo seu ser pesasse uma tonelada. Na sua cabeça somente dor e dor. Não culpava a Loba, como poderia? Ela era tão pura e a amava tanto que tinha certeza que se ela pudesse ter escolhido ficar, teria assim feito. Ele amaldiçoava aonde tinha chegado. Culpava as circunstâncias. Não queria estar naquele lugar, naquele momento, naquele corpo. Quando finalmente chegou no sopé da montanha, não conseguiu se forçar a ir vê-la, vagou por sabe-se lá quanto tempo e apagou.

Assim que o Lobo acordou, a primeira memória que veio à cabeça foi a cena da Loba saltando para a morte e o senso de derrota voltou com toda força. Estava num espaço entre as raízes de uma árvore e lá ficou. Por horas. Dias. Semanas. No momento em que sentiu que lhe faltavam forças e sua vida ia embora, num último esforço decidiu ir até onde a Loba tinha se atirado, para descansar ao seu lado.

Ao caminhar com dificuldade, se dá conta que é noite. Ficar muito tempo num lugar com pouca iluminação e preso em si mesmo tinha aumentado sua sensibilidade à luz. Isso também, acima de tudo, chamava sua atenção para a lua. Ela brilhava tanto quanto na noite que ele não conseguia esquecer.

Parando pra pensar, a não ser que determinasse onde estava, não conseguiria determinar onde ficava aquela montanha. Caminhou sem rumo até que encontrou um riacho. Ao vê seu próprio reflexo, não identifica o que vê. Estava muito malnutrido e havia perdido parte do pelo. Ele bebe do rio, e com a água vêm também uma torrente de memórias daquele lugar. Ele conhecia aquele lugar, fazia parte do seu território, no entanto aquilo queria dizer que estava bem distante do seu objetivo. Se quisesse sobreviver a viagem teria que se alimentar. Começou então a procurar pistas até que encontrou um rastro. Já havia feito aquilo milhares de vezes durante sua vida, mas nunca sentira tanto prazer em fazer aquilo como daquela vez. Gostava de caçar, a forma como uma pista levava a outra o instigava. No fim, abateu uma lebre, logo antes de ela voltar e se esconder em sua toca.

Sob a luz do luar, devorou com vigor o que parecia a refeição mais deliciosa de sua vida. Quando terminou, uma mistura de sentimentos o preenchia. Se logo ia morrer, porque se sentia tão vivo? Afastou os pensamentos. Com energia suficiente, seguiu seu caminho.

Quando finalmente chegou até a montanha, sua respiração acelerou, as memórias daquela noite ficaram vivas de novo em si. Lembrava do cheiro dela, de como se amavam e se divertiam e depois, depois ela correndo e pulando. Eufórico, começou a subida, se atiraria de lá assim como sua amada. Conforme subia, mais acelerava, tanto que próximo do desfiladeiro nunca pensara ser possível correr tão rápido. Cada parte do seu corpo vibrando com a experiência. No último momento, ele para bruscamente ao olhar uma última vez para a lua. Era ela, ele pensou, ela tinha se tornado aquela coisa brilhante que voava no céu. Somente a lua conseguiria comportar o seu grande ser, ou brilhar aquele distinto brilho branco. Quanto mais pensava na ideia mais lhe parecia real. Com a epifania veio um uivo. Um uivo longo. Um uivo que gritava “Ei, eu ainda estou aqui, me leve com você aonde quer que vá”, e ao mesmo tempo um uivo de aceitação construído pela ideia que ela estava bem e pela esperança de um dia vê-la novamente.

Como nunca teve a coragem de ver o corpo, no íntimo o lobo não sabia de fato se a Loba havia se tornado a lua ou não, mas de uma coisa ele sabia, se ele sequer duvidasse, abandonaria tudo o que tinha sido até agora e deixaria de ser ele mesmo, e aquilo era pior que morrer. No final percebeu que não ter ido ver o corpo era o que devia acontecer e estava contente de ter sido assim.

Ao ouvir a história, usando de toda sua empatia, o Corvo compreendeu na mesma hora. O Lobo não o temia, porque não tinha medo da morte, na verdade no dia que ela viesse a saudaria. Por mais que a dor da perda do Lobo doesse, pois o Corvo sabia que doía, talvez até mais que sua própria dor, o Lobo havia se reconciliado consigo mesmo e por causa disso não se destruiu. Olhando para si e pensando no seu medo, o Corvo pôde notar, estava cometendo o mesmo erro que o Lobo havia cometido, estava amaldiçoando onde tinha chegado e abandonando a si mesmo. Quando ele lembra do tempo que tentou ser um Lobo isso fica claro para ele, estava mentindo para si, pois somente havia conseguido ajudar o Lobo nas caçadas por voar, pensar, e observar como um Corvo, porque no fim era aquilo que ele era. A partir daí, os dois continuaram se ajudando nas caçadas.






Nota: Ao entender o Lobo, o Corvo pôde entender a si mesmo e pela primeira vez, ainda que os outros seres continuassem o desprezando estava satisfeito com quem era, porque ele era o que era. Esse é mais um conto próprio sobre alteridade, empatia e principalmente aceitação que quero compartilhar com você. Depois de vários anos com a ideia da história na mente, conseguir finalmente colocá-la no papel me deixa muito grato. Por isso, gostaria de agradecer a ajuda de um amigo, sem o qual a história não teria surgido na minha cabeça pra começo de conversa. Como evoca a mensagem na biografia do blog, para que essa ideia não seja depositada na biblioteca do vazio, a compartilho com quem quer que ela chegar!
*A imagem usada no texto é da artista Carol Cavalaris e pode ser encontrada aqui